segunda-feira, janeiro 29, 2007

Apropriação nº1

Por falta de tempo ou de inspiração (ainda existe isso?) é que o post de hoje é uma descarada apropriação. Li o texto a seguir, no perfil de uma amiga no Orkut e achei bem legal. Segundo breve pesquisa na web, a autoria é de Marina Colasanti.

Espero que gostem. E se não gostarem, procurem outro blog pra ler, oras! Esse aqui é meu e posto nele o que eu quiser! =P Ou o que me for permitido! XD





Eu sei, mas não devia (1995)

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o Sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. A lutar para ganhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas de mais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no final da semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.

A gente se acostuma, para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde em si mesma.

Um comentário:

Poliana disse...

Putz Jak, eu li o livro com esse texto no primeiro ano da facu! Obrigada por fazer me lembrar dele (que vergonhosamente tenho xerocado em alguma pasta guardada no fundo do armário)...

É como ouvi em algum lugar "acostumar-se com o que nos faz mal é o primeiro sinal de que estamos morrendo aos poucos"...